JOÃO UBALDO RIBEIRO - A guerra que não vai acabar
quem sabe, pode vir a ser adotado, pois outro dia ouvi na TV que um casal
era "dois serumanos") precisa, pelo menos de vez em quando, alterar sua
percepção da chamada realidade, mexer com a própria mente e as emoções.
Prisioneiro de seus cinco limitadíssimos sentidos, não consegue perceber,
em condições normais, aquilo que suspeita ou sabe existir além deles.
E quer sair da prisão, quer sensações que ordinariamente não estão a
seu alcance. Outra necessidade, que corre paralela, é alterar o comportamento
habitual e quem for tímido tornar-se extrovertido, quem for melancólico tornar-se
alegre, a moça que hesita em dar resolver dar e assim por diante.
ser humano não usa somente drogas. Muitos lhes devotam aversão ou
medo e recorrem a vias diferentes. Se forem poetas, poetam; se não forem,
embarcam na poesia pelas mãos dos poetas. Ou veem o mundo pelos olhos
dos pintores e fotógrafos. Ou meditam, ou contemplam a natureza, ou ouvem
música, esta última considerada por alguns tão potente que Platão, por exemplo,
a baniu de sua República. Aliás, não falta quem condene a música, ou certos tipos
de música, por crer que ela induz à depravação e à expressão de temíveis baixos
instintos. E, como as experiências com esses alteradores da consciência não são
excludentes entre si, o ser humano desfruta de várias delas,entrando no que se
designa genericamente como "barato".
tipos e graus de transtorno, não só em quem os experimenta como naqueles que com
este se relacionam. Não há de ser outra a razão por que tantos deles são proibidos e
têm o comércio, ou mesmo uso, das drogas que os causam punido até com a morte.
Não obstante, com toda a repressão, as drogas proibidas continuam a ser vendidas e
existe muita gente que acha que seu barato vale o risco de uma longa prisão ou de
execução.Não vem ao caso especular sobre as razões para isso, mas cabe um raciocínio econômico
singelo: é fenômeno universal a oferta aparecer assim que aparece a demanda.
Havendo nariz para cheirá-lo, haverá pó.
novidade nesta constatação, mas a guerra ao narcotráfico, contrariando todas as
evidências, continua a tentar neutralizar a oferta e nada faz quanto à demanda.
Esta jamais deixará de existir, mas pode, por uma fração mínima do que se gasta em
repressão, ser razoavelmente controlada. Então por que será que verdade tão
patente é descartada? Por que será que se continua a mover essa sangrenta
guerra, tão vã e, sobretudo, tão dispendiosa?
somos nós, o otariado. Não me refiro a indivíduos, mas ao que pode ser chamado
de "sistema". Existe um vastíssimo sistema relacionado à repressão ao narcotráfico,
composto não só pelas polícias genéricas e especializadas, mas por todas as estruturas
criadas para colaborar nessa repressão. É a lógica de sua existência, através da
qual têm sido mantidas e são diuturnamente ampliadas. Nacional e internacionalmente,
esse aparato, que envolve desde ministérios e forças armadas a polícias de aldeias,
tem como premissa que se deve combater um inimigo que se sabe que nunca será
vencido, combate este com um número cada vez maior de frentes e custos cada vez
mais elevados.
para ser inteiramente mapeado, que resiste, funcional e corporativamente, à mudança.
O interesse sistêmico em manter-se tem que ser levado em conta, mas ainda maiores
que ele são os interesses dos fornecedores, diretos e indiretos, de equipamentos e
serviços. Corre muito dinheiro na guerra contra o tráfico e cairá o queixo de quem
apurar na ponta do lápis o custo total apenas da operação do Alemão e sua
manutenção com tropas federais. Os produtores e vendedores de armamento têm
vivido grandes dias no Rio de Janeiro, o mercado só tende a ampliar-se, até mesmo
com a propaganda.
consumidor, como é a prática empresarial de praxe. Se não houvesse repressão,
esses custos baixariam vertiginosamente. Quem perderia? Não somente os vendedores
de armas e equipamentos bélicos, mas os corruptos de todos os níveis e quilates.
Para quem pensa que isso é coisa de Terceiro Mundo, lembre-se a corrupção
policial nos Estados Unidos, durante a vigência da Lei Seca. E, somente em Nova York,
os casos de corrupção policial envolvendo drogas fazem parte de um prontuário
considerável. Em alguns países, a corrupção nem ao menos tenta manter as
aparências, como muitas vezes ocorre aqui, mas é institucionalizada e contamina
toda a cadeia a que se vincula.
como no do mundo inteiro, em maior ou menor grau. Se não houver tráfico e a guerra
santa contra ele, onde ficarão os ganhos dos corruptos, que não terão por que exigir
comissões, subornos e propinas? É tolerável perder essa fonte de renda, em muitos
casos milionária? Receio que não, e o mercado continuará a funcionar esplendidamente,
para a felicidade harmoniosa de seus agentes, num entrelace delicado, em que o
traficante agradece à repressão por lhe proporcionar um ramo de negócios lucrativo,
a repressão e seus instrumentos agradecem ao traficante por fazê-los
prosperar e o corrupto agradece a ambos pelo rico dinheirinho malocado
em contas secretas. "O mundo é perfeito", sempre diz meu amigo Benebê, em
Itaparica. Isso mesmo.